19 de jul. de 2011

Mesa Redonda (III Simpósio de Ipu)


PERSONALIDADES IBIAPABANAS PARA O MUNDO:  GERARDO MELO MOURÃO


 Prof. Dr. em Direito José Luís Lira (UVA)


“... O poeta é um santo, um santo mártir, no sentido etimológico da palavra, que quer dizer testemunha. Mas o poeta é também um endemoniado. As duas coisas, para lá de todas as medidas...”



Gerardo Mello Mourão
“No meio de muitas correntes da poesia brasileira de hoje, é Gerardo Mello Mourão um estranho e um solitário. Nada há que se lhe assemelhe. Nenhum fazedor de versos desta parte do mundo tem com ele parentesco”.

Antonio Olinto

“Estamos diante de um poeta cuja obra é tão rara, tão autêntica e tão marcada como suas ásperas raízes no país dos Mourões e como a espantosa trajetória de sua residência na terra, uma existência pungida de rica e patética aventura e de enfurecida beleza humana”.

Augusto Frederico Schmidt

“Em toda a minha obra o que tentei foi escrever a epopéia da América. Creio que não consegui. Quem conseguiu foi este poeta de O País dos Mourões [Gerardo Mello Mourão]”.

Ezra Pound

“Declaro-me possuído de violenta admiração por esse imenso, dramático e vigoroso painel, que atestará para sempre a grandeza singular e a intensidade universal de sua poesia”.

Carlos Drummond de Andrade

“Agora podemos morrer. Nossa geração e nosso país estão justificados, com a poesia de Gerardo Mello Mourão”.

Guerreiro Ramos

“... Não vou fazer uma ronda nem uma calçada na obra de Gerardo Mello Mourão. A mi no me importa la obra, sino la zozobra. Basta-me assinalar que já em Cabo das Tormentas desponta o fio de uma inocência ou veemência que o poeta, galo já feito al primo canto, trata de esquecer, mais tarde, em seus longos poemas, refinando-se no exercício de asceta para o studium e a mestria dos meios necessários à busca da maldita virtú que criou o pantanoso e imperioso lodaçal da Poesia em nosso Ocidente, desde Petrarca até cada um de nós...”

Edison Simons

“... O compromisso de Mourão é com a eternidade”.

Andrade Muricy

“Algumas pessoas pensam que eu sou o grande poeta do Brasil... O grande poeta do Brasil é o Gerardo Mello Mourão. E digo ‘o’ Gerardo, como se diz ‘o’ Dante”.

Carlos Drummond de Andrade

“Tem um homem

que nasceu no errado lugar certo.

Longe de Wolffenbüttel

mas perto de Leibnitz e Lessing.

Longe dos fjords de Bergen

mas perto de Ibsen e Hamsum.

Longe dos pubs de Dublin

mas vizinho de Shaw e Joyce.

Seu nome rima com sertão.

Rima dura para o ignorante coração europeu

(tão cheio de frio e consoantes).

Mas este homem conhece o ideograma das estrelas,

justifica a bigamia de Pound

e chora pela brilhante derrota

que Portia infligiu a Shylok.

Este homem brasileiro - sertanejo de couro duro -

sabe - como Hopkins -

que é um fragmento da humanidade.

E reconhece o trovão,

a lâmina, a solidão,

o amor e o tédio.

(Doutor Honoris Causa na Papua Guiné).

Me espanto e me orgulho de ser contemporâneo

de alguém tão pequeno como o Mundo

que ele vive surpreendendo na cama do cáos.

Como Empédocles e Virgílio,

Aquino, James Crichton e Kierkegaard

que reconheceriam no olhar deste homem

que percebe a verdade entre

o olho e o objeto visto.

E resignado com a raiz dentro da pedra

ensina luz à escuridão.

Caminha só o poeta dos tempos que virão.

O homem que acredita em Zeus:

Gerardo Mello Mourão.”

Fausto Wolff - Rio, 22-11-1985
A saga de Gerardo: um Mello Mourão

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“O poeta é o porto do tempo”
Frei Walter H. de Almeida

As palavras do poeta ainda ecoam nos ouvidos e no coração:

“... Eu diria que tenho alguns títulos de cidadão honorário do Brasil, do exterior, do Rio de Janeiro, do Estado do Rio, da cidade de Paris e assim por diante, pendurados em algum canto das minhas paredes e alguns que eu nunca fui receber. Mas este de Guaraciaba, eu não poderia deixar de vir. Esta terra da Ibiapaba é também minha. Nasci aqui na chã da Ibiapaba, em Ipueiras e essa terra está no âmago do coração de cada um de nós. Foi aqui por esta região que passou Martin Soares Moreno, enviado por Jerônimo de Albuquerque, do Maranhão, para entregar uma delegação, uma carta ao Rei de Portugal, pedindo que se transformasse o Ceará em membro do Estado do Brasil e não mais Estado do Maranhão. Foi aqui, portanto, que a cidadania cearense nasceu, que a unidade provincial do Ceará se realizou. Neste lugar, nesta cidade situada no ponto mais alto da Serra da Ibiapaba e o ponto mais alto dos corações dos brasileiros. Aqui o Ceará nasceu para o Brasil. Essa terra está assim vinculada às melhores tradições do País. Por isso eu recebo com muita honra, e até com algum sacrifício de saúde para chegar até aqui, para guardar este título no meu coração”.

Foi assim que Gerardo Mello Mourão, cuja poesia cedo me atraiu, nas noites frias de Guaraciaba do Norte, se expressou ao receber a cidadania daquela terra onde seu oitavo avô reinou. No meu entendimento, foi aquele um dos dias mais importantes dos últimos 200 anos para Campo Grande. O retorno de um autêntico Mourão para ser homenageado por um dos municípios do País que seus ancestrais fundaram: o País dos Mourões.

Menino, tive meu primeiro encontro com a poesia histórica de Mello Mourão através das páginas d’O País dos Mourões. O assassinato do primeiro juiz da Vila Nova d’El-Rei (hoje Guaraciaba do Norte), a mando de Manuel Martins Chaves, tão ricamente narrado pela pena de Gerardo. O mais fiel representante de uma geração, de um povo, ele que se constituiu cidadão do mundo e alcançou patamar jamais atingindo por outro poeta.

Após escrever quatro biografias, vou compondo o pantheon dos meus ídolos. De alguns deles sonhava apenas com um autógrafo, com um gesto ameno. De todos me fiz amigo e biógrafo. E a saudade dos que se foram ainda dói. Meu último trabalho foi, lembrando as palavras de Antonio Olinto, o próximo a ser biografado, sobre “aqueles que, mais próximos de nós, também estão próximos da santidade”.

Em Candidatos ao Altar, apresento o resumo biográfico de todos os que estão habilitados em processo canônico de beatificação e/ou canonização.

Agora chegou a vez de registrar, audaciosa, mas, imparcialmente, A saga de Gerardo: um Mello Mourão, escolhido que foi em 1997, pela Guilda Órfica, uma secular irmandade internacional de poetas, o poeta do século XX, nas páginas que se seguem.

Ressalte-se que o processo criativo é mais organizacional do que crítico, posso até dizer-me um compilador deste A saga de Gerardo: um Mello Mourão e manifesto meus sinceros agradecimentos à Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), que apoiou este projeto editorial, segundo, a Matusahila Santiago e Norma Soares (que tanto exigiu que fizesse esse trabalho), pelo incentivo, a Carlos Moreira e Paulo Felipe de Sousa Neto, ipueirenses que se orgulham de seu conterrâneo e me forneceram valiosas informações e, principalmente, a Henrique Ayres que facilitou o acesso aos arquivos do seu avô-poeta na Rua Toneleiro, nos vários encontros que tivemos no Rio.

Sobral, festa de Santa Teresinha de 2006.

José Luís A. Lira

“Era uma vez um país

onde o fruto alastrava o chão

vastos campos onde os touros

nédios urram sobranceiros

entre os bandos de carneiros

pelas soltas dos Mourões...”



(MOURAO: 1986, pág. 93)

“O poeta nordestino é filho do som, como Gerardo Mello Mourão, com seu baião camoniano, dito A Invenção do Mar”.

José Nêumanne Pinto

“... A chuva caíra toda a noite sobre

a cidade de Bruxelas e as lomas

e o campo de Waterloo

e ele ia de barraca em barraca e os olhos

dos guerreiros da Velha Guarda cruzavam

em lâminas os olhos

do Grand Empereur

e a chuva desabava

o chapéu de dois bicos empapado de água

e ao toque da alvorada

emergiu da tenda

junto a Ferme Cailloux

e era o sol de Austerlitz em Waterloo:

— ‘le soleil d’Austerlitz, Bertrand’ —

— ‘um drôle de chapeau, mon Empereur’ —

— ‘c’est Ceará, Brésil’ —:

e um chapéu de couro

do país dos Mourões

cobriu naquele dia

a cabeça e o destino da Europa.

Naquele tempo

Manuel Martins Chaves, Coronel das Ordenanças da Cavalaria do Rei

tataravô de meus tataravôs

sobre a cordilheira da Ibiapaba

no pé da Serra dos Cocos

assentou sua casa

sobre a várzea dos carnaubais das Ipueiras

sobre as macambiras do Tamboril e dos Inhamuns

assentou sua casa

e no alto da serra

entre as palmeiras de São Gonçalo dos Mourões

nas lonjuras altas e azuis do Ipu e da Vila Nova em Campo Grande

Assentou sua casa

no sertão do Crateús

assentou sua casa:

e as colunas de aroeira da alpendrada

riscam o retângulo: era fundado

o país dos Mourões

e o Coronel Manuel Martins Chaves

mantinha a tropa e era senhor do Ipussaba

das ribeiras do Potí, do Acaraú, do Jatobá

mantinha a tropa e era senhor

até o Parnaíba

e além, muito além daquela serra que ainda azula no horizonte

κ α τ’ έ κ є ǐ ν o ν τ ό ν χ е ν o ν

levantavam a fronde

os coqueiros e os machos

no país dos Mourões.

Naquele tempo

o Rei mandou governar os povos

João Carlos Augusto de Oyenhausen e Gravenburg, cunhado do Conde de Ega e valido do Visconde de Anadia

mas os povos se regiam

à bravura e ao coração de meus avós

‘o έ μ o ς π α π o ς κ ά λ λ ι σ τ o ς

e o gringo empalidecia à visão

e o Coronel era belo demais com seus olhos de gavião

e os cabelos maduros

sobre a testa morena

e João Carlos cobiçava a patente de Marquês do Aracati

e o Coronel nascera Príncipe da Ipueira Grande

e mantinha a tropa e era senhor

e as fêmeas floresciam para os machos de sua raça

e a justiça era feita no alpendre

da casa do Campo Grande

O Doutor Manuel de Magalhães Pinto Avellar e Barbedo, graduado pela Universidade de Coimbra, do Desembargo de Sua Majestade Fidelíssima e seu Ouvidor Geral e Corregedor de todos os feitos da Capitania do Ceará Grande:

‘nascidos são o bem e o mal ao Coronel

de ser valente e cheio de honra e ter

tão abundantes coração e espada’.

E a soberba de seus potros na cavalhada

e a destreza de seus homens na faina

e os copos de ouro de sua espada espanhola

e a coronha de prata de seu bacamarte

o malquistaram com o Governador do Rei

e lhe atraíram dele um ódio valeniano

E a graça de suas fêmeas

e o sino de suas igrejas

enchiam várzea e serra de harmonia.

‘Alteza:

eu preciso acabar a raça dos Mourões

são monstros, antropófagos e seu chefe

é monstruosa fera, réu endurecido pelo crime

Manuel e Francisco, corifeus da morte

protetores de quantos malfeitores, malvados, salteadores

e as vizinhas do Maranhão e do Piauí

régulos têm fundado o poder dos Mourões

também chamados Feitosa, ou Mello, ou Araujo Chaves, ou Correia Lima,

todos do mesmo sangue

na audácia e despotismo

com que medem o preço à vida e à morte:

eu preciso acabar com a raça dos Mourões’.

Foram vinte cartas a Sua Alteza Real:

‘não é apenas Manuel, seu sobrinho Francisco Xavier, Capitão-Mor

É ainda mais cruel do que ele e seu nome é terrível nesta Capitania

eu preciso acabar com a raça dos Mourões’.

Foram vinte cartas ao Príncipe:

‘João Carlos Augusto Oyenhausen, Governador da Capitania do Ceará Grande:

Eu, o Príncipe Regente vos envio muito saudar

e não sofro confrontem seu poder ao meu

os Mourões facinorosos, a turba de Mellos e Feitosas’.

‘Ilustríssimo Senhor Visconde de Anadia:

eu, João Carlos Augusto de Oyenhausen vos envio respeitoso e submisso saudar e o penhor de meu serviço:

quer a infelicidade que esta causa pública tenha tomado a face de uma causa minha particular eu preciso acabar com a raça dos Mourões monstruosa hidra é o cabeça dos Mourões desde muito tempo inimigo declarado da humanidade tem mostrado um desaforo muito vizinho da independência constituindo-se publicamente patrono dos fascinorosos dos quais a sua morada fixada no meio dos matos tem sido até agora uma coitada respeitada inviolavelmente pela Justiça e pelos Corpos Militares muitas vezes em ludíbrio, desabono e prejuízo da autoridade régia, até mesmo por alguns de meus antecessores donde tem nascido a monstruosa fera de hum despotismo equilibrando sempre e muitas vezes preponderando o seu terrível nome ao dos Governadores desta Capitania sendo huma prova desta induvidável verdade o ter-se muita vezes gritado no arrombamento das Cadeias de Sobral e Vila Nova, desta Capitania, nas Aldeias Altas do Piauhy e em muitas outras assuadas públicas viva o senhor Coronel Manuel Martins Chaves; seu sobrinho Francisco Xavier tem posto à contribuição o Distrito em que mora e os circunvizinhos e comanda os bandos famanazes e as propriedades, bens, prizoens e públicas se entrégão à sua descrição assim que aparece seu feio aspecto ou se pronuncia o seu Nome mais temido de que o dos Governadores e talvez mais do que o de Vossa Alteza Real porque os rústicos povos sem terem idéia do sumo bem, só a teem dos grandes males a que continuamente estão expostos e receião todos os dias’.

Mas do Ceará Grande ao Maranhão e ao Pernambuco nenhum comando de tropa se atreveu a levar voz de prisão à casa dos Mourões.

Naquele tempo

João Carlos Augusto de Oyenhausen

anunciou ao Coronel que ia revistar as tropas sertanejas

e pediu a honra de hospedar-se em sua casa:

com a carta-régia no bolso

e quinhentos soldados de linha

no terreiro alimpado o Coronel mandou assar os novilhos, os carneiros e os bodes para as quinhentas bocas da soldadesca

e acolheu na Casa Grande o Governador e seu estado-maior

e nas baixelas de prata foi servido o banquete

e nos cristais sonoros o vinho da França.

E João Carlos Augusto de Oyenhausen e Gravenburg

levantou o brinde à saúde

da casa dos Mourões

e bebeu com seus oficiais

e ao sono deles foram oferecidas

as camarinhas mais frescas, de janela ao nascente e as redes mais largas

e era a rescendência do capim santo nas arcas de cedro.

E o Governador e seus soldados foram dormir armados

e no meio da noite se levantaram de surpresa

e invadiram a alcova onde dormia o Coronel ao lado de minha avó Dona Úrsula

e Oyenhausen encostou a clavina ao largo peito do Senhor da Ipueira Grande

e a clavina abateu-se à bravura e ao desprezo de seus olhos e Oyenhausen sacou do bolso da esclavina e depositou sobre a credencia de mármore uma coroa de ouro:

— ‘sabe de quem é esta coroa?’

— ‘de minha augusta Senhora, a Rainha Dona Maria I.a’.

— ‘Pois em nome dela esteja preso’. E a cabeça

do Coronel curvou-se sobre o peito largo

e leito a leito a sinistra empreitada prendeu os familiares

e os serviçais

e Francisco Xavier, avô de meu avô, sacou a espada e

recusou-se entregar-se:

— ‘Renda-se, meu sobrinho, a nossa raça é raça de cavalheiros

e ainda traidor, o hóspede é sagrado em meu teto; e o nome

de minha Rainha e Senhora foi chamado e ao nome

de tão alta Senhora e bem amada

rendem-se em minha raça a espada e o coração’.

— ‘É à ordem de meu sangue que me entrego

e não à deste’— e estendeu a espada:

— ‘quero-a pelos copos’

— ‘receba pela ponta, se quiser’

E o Governador e seus quinhentos homens

e os cavalos com os presos aloujados

partiram a galope até o mar

e ao seu encalço os nossos:

tarde!

Sofreamos

os cavalos resfolegantes, suarentos

na espuma salgada

os bacamartes pendiam inúteis

e os punhos se crispavam nos terçados

e eram verdes os reflexos dos verdes mares bravios

e o terral soprava e a galera do Príncipe

levava ao longe

Manuel e Francisco.

O Doutor Luiz Manuel de Moura Cabral, do Desembargo de Sua Real Alteza o Príncipe Regente Nosso Senhor (...), deu conhecimento aos Juízes de Fora e a todos os Senhores de Portugal e Conquistas, aquém e além mar, do confisco e arrematação dos bens do Coronel.

E minha tetravô Dona Úrsula deu suas jóias à sobrinha

Cosma

e com elas arrematou os bens do prisioneiro

suas léguas de terra, seus rebanhos, seus escravos

e quinze libras de ouro e trinta libras de prata:

e Manuel Mourão depositou em cartório a Carta de Arrematação .

Naquele tempo

a águia de Napoleão pousava em Lisboa

no losango dos lanceiros de Junot:

e da prisão do Limoeiro o Coronel Manuel Martins Chaves,

do país dos Mourões,

mandou ao Corso sua história e o regalo

de um chapéu-de-couro da Ipueira Grande:

e o tenente francês lhe trouxe o rescrito da liberdade

e o grande N o firmava

e pela primeira vez a mão trigueira do Coronel tremeu

e o coração no peito largo

parou: e a palmeira

de seu corpo tombou sobre o batente

da prisão do Limoeiro, no mesmo

Paço de Apar São Martinho onde vivera

a Rainha Dona Leonor Telles quando

ali caiu assassinado

pelo Mestre de Aviz e por Luiz Pereira

o Conde de Ourém, João Fernandes Andeiro.

E Francisco Xavier tornou ao país dos Mourões

e semeou Mourões

e foi avô de meu avô e avô

do General Sampaio e foi

senhor de muitas vidas e de muitas mortes

e de sua própria morte a ferro e fogo

em defesa da fé no morro da Taboca.

Pelo rastro de teu sangue no portal

No Paço de Apar São Martinho amou a Rainha Dona Leonor Telles

pelo rastro de teu sangue

ouvidor e vedor desta memória

rumo a teus ossos:

por teus ossos

um ventre e a terra

onde plantaste tíbias, tarsos, metatarsos

dos Mourões será:

na primavera um seio

em flor.”

(MOURAO: 1986, págs. 120/129)

Em Rastro de Apolo, Mello Mourão diz:

“Nasci tocando viola

sou Mourão das Ipueiras,

dos Mello do pé-da-serra

reinador destas ribeiras

tanto canto em minha terra

como em terras estrangeiras

As cordas desta viola

são meus pés e minha mão:

no galope a beira-mar

nos oito pés em quadrão;

em martelo e gemedeira

em gabinete e mourão”.

(MOURAO: 1986, pág. 327)

O bêbado de Deus

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Gerardo conservou as histórias que ouviu de seu santo e escreveu o belo “O bêbado de Deus”, incursionando na hagiologia ou mais especificamente hagiografia ao lançar a memorável vida de São Gerardo Majella*, o pequeno alfaiate do interior da Itália.

Logo no primeiro capítulo de “O bêbado de Deus”, lemos o emocionante relato do qual não podemos deixar de dar conhecimento ao leitor:

“No último novembro, do ano 2.000, véspera de inverno no outono peninsular, é envolto nesta atmosfera de surpresa, que aparece ao menino meridional da América o texto histórico e geográfico da paisagem lucana, da Itália meridional, desde o momento em que salta do trem romano na pequena estação de Bella-Muro. É um menino carregado de anos, do país do Siarah Grande, de serras e sertões do nordeste brasileiro, tão iguais aos sertões e às serras da Magna Grécia lucana, chamado por irresistíveis vozes de seu próprio passado, a visitar aquelas paragens. Parece que os anos não passaram para o menino inquieto, em sua permanente aflição da busca de Deus. É um menino igualmente chamado Gerardo Majella. O menino que também foi clérigo redentorista, de repente se reencontrou milagrosamente consigo mesmo no sofrido peregrino daquelas ladeiras. Depois de prostrar-se diante do altar da igreja paroquial, onde se expõe a relíquia dos ossos de um longo dedo do santo da terra, as ruas entupidas de carros e emolduradas pela prosperidade do progresso não o despertam de seu sonho. E ele parece encontrar nas esquinas das assombradas casas brancas, metido na bela batina preta dos liguorios, o pequeno alfaiate chamado Gerardo Majella, que ainda anda por ali há mais de duzentos anos, como um fantasma encantado, saudando e alegrando as pessoas. Boa tarde, São Gerardo Majella, Pazzarello di Dio, Doidinho de Deus!”
(MOURÃO: 2001, págs. 25/26).
Estilo
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O grande crítico literário e imortal da Academia Brasileira de Letras, Antonio Olinto afirma que “... é Gerardo Mello Mourão um estranho e um solitário. Nada há que se lhe assemelhe. Nenhum fazedor de versos desta parte do mundo tem com ele parentesco”. Eu não ousaria comentar-lhe a poesia. Contento-me em repassar o que ele mesmo diz:
“Eu não sou seguidor de ninguém. Tenho, é claro, referências fundamentais para meu próprio trabalho. Seria um ato de soberba imaginar que eu venha a ser referência de algum grande poeta. Aqui lembro com emoção um poeta jovem que conheci, um poeta inteiro e imarcescível*, parte de cuja obra publiquei em livro. É uma lembrança sagrada para mim, para alguns amigos e para meus filhos. Suicidou-se silenciosamente aos 21 anos, no esplendor de sua juventude e de sua vida, por puros motivos de amor à poesia. Sua morte é o legado mais pungente que nos resta de uma vida poética”.

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