18 de ago. de 2013

Conferência de Encerramento ( V SIMPÓSIO IPU)

V SIMPOSIO DE IPU – CEARÁ
13 de julho de 2013
Realização: Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA.
ONG Biodiversidade - Co- Realização:SEBRAE-CE e Prefeitura Municipal de Ipu.
MIDIA, MULHER E CULTURA: VIOLÊNCIA E PODER.
Maria Beatriz Nader
Boa noite a todas e todos.
Agradeço o convite à equipe que tão bem coordena o V Simpósio de Ipu e que nos recebeu com muito profissionalismo.
Em especial agradeço ao Marcos Sampaio, organizador do evento, pela gentileza com que sempre nos tratou. Sua cordialidade e seu empenho em nos trazer até aqui.
Agradeço também ao Antonio Iramar, meu orientando, que carinhosamente, durante o intervalo de uma aula de 4 horas seguidas, quando tomávamos um café, me convidou para estar aqui hoje com vcs.
Muito me honra o convite e estar aqui diante de vcs, e digo desde o inicio, é muito prazeroso e proveitoso, pois podem ter certeza, cada vez que me preparo para falar a um público desta importância, sempre aprendo, e aprendo muito.
E, porque aprendo quando venho falar de algo que faço em meu cotidiano? Era para eu já saber de cor o que devo falar. Trabalho na academia com violência contra a mulher e meus projetos de pesquisa, muito antes de me pós doutorar, em 2010, já tinham como mote este tema. Meus alunos, de iniciação científica, já desenvolvem comigo pesquisas na Delegacia de Atendimento a Mulheres vítimas de violência desde o ano de 2009. Então porque digo que cada vez que venho falar de meu trabalho aprendo mais um pouco?
Na realidade, o tema violência contra a mulher, apesar de ser um assunto por muitas vezes cruel de se estudar, pelo próprio sentido que tem o teor do tema, é esclarecedor, pois a cada Boletim de Ocorrência que temos acesso nos mostra uma forma diferente de agressão, de perturbação, de violência. E, o conhecimento desses fenômenos contribui significativamente com nosso saber a respeito de nossa cultura.
E, em minha avaliação, dentre o que me foi dado de pronto para tratar nesta noite, a cultura é, de longe, o que acarreta mais problema de definição para se entender a violência contra a mulher.
Por isso, começo comentando de modo muito breve, o conceito de cultura do qual se pode lançar mão para entendermos a violência contra a mulher neste nosso pais, em particular. Para isso, partilho o conceito elaborado por Darci Ribeiro, na obra Os brasileiros, (9ª Petrópolis: Vozes, 1987. p.127) o qual se referindo a uma das maneiras de enfocar os fatores culturais que determinam o comportamento de determinadas sociedades, entende que a
Cultura é a herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo co-participado de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimento da subsistência, de normas e instituições reguladoras das relações sociais (...) de valores e crenças.
Este conceito mostra que a cultura é uma lei particular de fenômenos que reproduzem conceitos de uma realidade simbólica, que se transmitem por gerações com características de tradição, modos de existência e formas de organização que exprimem uma realidade comunitária humana. Por isso, a cultura de cada povo é percebida por ele como natural e necessária para o provimento e continuidade de sua existência. Neste sentido, a família, instituição que nos abriga desde o primeiro momento de nossas vidas,
pode ser considerada uma instituição que atravessa a História, com formas e objetivos que transmudam numa mesma época e lugar, conforme as circunstâncias em que o grupo social que a insere estejam sendo observadas. O sistema ideológico da família é intrinsecamente ambíguo, pois reflete, de um lado, a objetividade da realidade comunal, e de outro, explica realisticamente a experiência vivida pelo grupo, provocando um predomínio do social sobre o natural.
E, este predomínio do social sobre o natural é o que nos move para entender como a violência contra a mulher está tão presente em nossa sociedade desde os tempos mais primitivos, até a contemporaneidade.
Na história do Brasil, durante muito tempo, a violência sofrida pelas mulheres não era considerada um problema social que exigisse a intervenção do Estado, pelo fato de ocorrer, sobretudo, no espaço doméstico e em meio a relações conjugais e familiares. Apesar de um grande número de mulheres de todas as classes sociais serem frequentemente submetidas à violência de vários tipos, isso era visto como questão de ordem privada. É o famoso “entre briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.
A cultura da ideologia patriarcal que estruturava as relações conjugais e familiares no passado, e ainda hoje, em determinadas comunidades do Brasil, conferia aos homens um grande poder sobre as mulheres, justificando, por exemplo, atos de violência cometidos por pais e maridos contra filhas e esposas. Nascida do estilo de vida das minorias dominantes, essa ideologia acabou influenciando todas as outras camadas da sociedade, disseminando entre os homens um sentimento de posse sobre o corpo feminino e atrelando a honra masculina ao comportamento das mulheres sob sua tutela. Assim, cabia a eles disciplinar e controlar as mulheres da família, sendo legítimo que, para isso, recorressem ao uso da força.
O Código Filipino, legislação que permaneceu vigente no Brasil até o século XIX, permitia que o marido assassinasse a esposa adúltera. Muitas mulheres inocentes foram mortas sob a acusação de terem traído seus maridos. Muitos homens que queriam se livrar de suas esposas, por causa de outra mulheres ou mesmo por causa de uma herança, se aproveitaram da lei, que fora criada no tempo de Moisés e perdurou até o século XIX.
Também era facultado aos homens o enclausuramento forçado da esposa e filhas nos “recolhimentos”, instituições criadas para abrigar e educar mulheres, que se tornaram verdadeiras prisões femininas. A internação compulsória de mulheres nessas instituições assumia caráter de punição a adultérios, arroubos amorosos não aprovados pelas famílias e maternidades ilegítimas, além de servir também para impedir o parcelamento de heranças e dotes, pelo afastamento das filhas mais novas, dentre outras situações que fugiam ao padrão de comportamento feminino instituído pela cultura que predominava naquela época. Muitas mulheres foram assim isoladas do mundo, presas por quererem viver suas próprias vidas.
No Ceará, não foi diferente. A professora Maria das Graças de Loiola Madeira, da Universidade Federal do Ceará, no trabalho intitulado ‘A educação pela caridade no Império em Fortaleza: o abrigo de órfãos’, mostra que havia aqui várias instituições que acolhiam crianças órfãs, desde o século XIX: o Colégio dos Educandos, a Santa Casa de Misericórdia, o Colégio Imaculada Conceição, seis Casas de Caridade criadas pelo Padre Ibiapina e o Asilo de Alienados e de Mendicidades e a Colônia Cristina. Esta última recebia meninas na faixa etária de 12 e 13.
Segundo a professora Madeira, a Colônia Cristina, no ano de sua instalação, em 1880, recebeu 157 meninas entre brancas e pardas.
O trabalho desta professora foi apresentado na ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
Mas, continuemos.
Legitimada pela ideologia patriarcal, institucionalizada e garantida por leis, a dominação masculina fez do espaço do lar um lócus privilegiado para a violência contra a mulher, considerada necessária para a manutenção da família e o bom funcionamento da sociedade. Uma moral sexual dupla – permissiva para com os homens e repressiva com as mulheres – atrelava a honestidade da mulher a sua conduta sexual. O comportamento feminino considerado fora do padrão estabelecido para as “mulheres honestas” justificava a violência como forma de disciplina ou punição, culpando, no fim das contas, a própria mulher pelas agressões sofridas.
Assim, a cultura da ideologia patriarcal banaliza e justifica diversas formas de violência cometidas contra as mulheres, criando na sociedade um sentimento de tolerância que dificulta e mesmo impede a punição desses atos, mesmo quando estão tipificados como crimes nos códigos penais. Esse quadro ideológico resistiu às mudanças políticas e econômicas que marcaram o século XIX e a primeira metade do XX, ainda que as mulheres tenham obtido inegáveis avanços com relação aos direitos políticos e à inserção ao mercado de trabalho.
Mas, foi na segunda metade do século XX que a história começou a mudar efetivamente. O questionamento radical, liderado por vozes feministas, foi minando a legitimidade das formas de violência específicas contra elas e abrindo uma nova perspectiva de vida para as mulheres, ao longo daquele século.
E, um modo interessante de acompanhar as mudanças e permanências verificadas na sociedade brasileira no que diz respeito à cultura da violência cometida contra as mulheres são as notícias veiculadas pela imprensa. Casos de assassinatos ou graves agressões a mulheres, publicados muitas vezes de forma sensacionalista, agitaram a opinião pública, provocando debates, revelando as motivações e justificativas para
a violência, os valores em jogo e as opiniões predominantes na sociedade, de acordo com o contexto e com a época histórica.
Desta forma, tomei como exemplo alguns casos de violência contra a mulher, ocorridos ao longo do século XX, que foram amplamente discutidos pela mídia, muitas vezes coloridos com versões preconceituosas, que como escritas por homens de seu tempo, muitas vezes culpava a mulher pelo estupro, qualquer que fosse sua idade.
Também o “homicídio” (o certo é femicídio ou feminicídio) era explicado nas noticias tendo como base as diferenças entre a natureza do sexo biológico do individuo que diferenciava os direitos do homem e da mulher. A mídia, escrita por homens e mulheres que também traziam consigo valores de uma educação tradicional, reproduzia tais valores e era complacente com o homem que estuprava uma enteada criança ou adolescente. Na obra “Assassinato de mulheres e direitos humanos”, de Eva Blay, tem-se noticia de um vídeo documentário, de 1982, que mostra a história de Cícera, mãe de Jocilene, que foi vítima do padrasto. O caso foi anunciado em manchetes que diziam como o homem “Trocou a mulher de 30 por outra de 12 anos”. A observação do jornal afirmava que “ele era esperto”. A mulher, esposa e mãe da menina violentada reagindo, foi descrita como “enciumada”, “mal amada”, “não tinha razão nenhuma de reclamar”, pois afinal, “era uma velha”.
Além disso, pautada na cultura ideológica patriarcalista que permeava (e, ainda permeia) o Brasil, a mídia trazia em seu bojo diário, casos nos quais mostrava ser o assassino mais importante do que o crime e que, em quase todos os casos de assassinatos e estupros a mulher era culpada.
Vejamos uns exemplos:
O Correio Paulistano, edição de 11 de setembro de 1905, nº 15.118, publicou que a “dengosa mulata” Joanna Maria Ramos, foi esfaqueada por
um homem cafuzo, que estava embriagado, em um baile na Rua Santo Amaro, em São Paulo. Joanna Maria Ramos chegara ao baile que acontecia em uma ‘casa de pretos’ na Rua Santo Amaro, em São Paulo, com um vestido vermelho de bolinhas brancas e um ramalhete de cravos-chita nos cabelos divididos ao meio. Joanna bebeu e dançou de modo a perturbar os homens e provocar ciúme e inveja nas mulheres presentes. Um homem cafuzo se interessou por ela e foi correspondido e dançaram grande parte da noite. Mas, ao final da festa Joanna se interessou pelo tocador de viola. O homem cafuzo com ciúmes cravou-lhe na clavícula a lâmina de uma faca, deixando-a agonizando no chão. Na opinião de algumas mulheres presentes, enfurecidas pela forma como a festa acabou, desde que Joanna chegara ao local elas souberam que as coisas não iam acabar bem. Reforçando o entendimento cultural da época de que a mulher que não se comportava com esmero merecia punição, aquele jornal afirmava que “(...) não fosse todo aquele seu requebrado coquetismo, aquela denguice toda, a par de uma franca espontaneidade, que a tornou num momento querida de todos, requisitada, e, certamente, o samba não teria terminado sem incidentes desagradáveis”. A morte de uma mulher foi considerada como um incidente desagradável que perturbou o samba.
Outro caso ocorrido anos depois no Maranhão: No mês de fevereiro de 1954, o Jornal Pacotilha/O Globo, publicou que Ceci Sodré, grávida de sete meses, fora morta após ter recebido nove punhaladas desferidas por seu companheiro, com quem tinha uma filha. Ceci Sodré, uma mulher de 24 anos, vivia com Domingos, pedreiro, que não sabia que ela ainda era casada com outro e que o marido, que ela havia dito estar morto, estava vivo. Ao descobrir a verdade, contada por um colega que avistara o tal marido, discutiram o fato. Domingos a agrediu e a matou. Armado com um punhal puxou-a até o quintal e apunhalou-a várias vezes e após o
crime, pediu a uma vizinha que cuidasse da filha e fugiu. Mas, perseguido pelos moradores da rua que, após o prenderem, o levaram à Delegacia do 2º Distrito. Segundo depoimento de Domingos dado à polícia, ele havia trabalhado o dia todo e, depois, fora ao mercado comprar carne e ao chegar pediu à Ceci para cozinhar a carne que trouxera e ela respondera que não iria fazer isso porque a carne não era boa. Então, Domingos a agrediu com socos e bofetadas. Em sua defesa, Domingos alegou que Ceci era uma mulher infiel e que sempre o traía. Além disso, afirmou não ser o pai da criança que Ceci carregava no ventre e, por isso matou ela e o filho.
Como já mencionado antes, acredito que o mais relevante nas declarações dos envolvidos em casos de violência doméstica ou de crimes passionais é entender como se dá a construção da narrativa sobre o fato, como estas falas são permeadas por percepções sobre o comportamento feminino que a sociedade espera que a mulher desempenhe e quais comportamentos os sujeitos envolvidos esperam que sejam cumpridos por essas mulheres. Além disso, como os jornais reforçam os estereótipos criados ao redor da mulher e seu comportamento, seja para mostrar que ela é mulher honesta, seja para contribuir com a imagem negativa da mulher.
Continuando: o Jornal Pacotilha/O Globo, de 10 de fevereiro de 1954, na página 4 trouxe uma entrevista com Domingos e este afirmara que Ceci não lhe era fiel. Reforçando a posição negativa de Ceci na sociedade maranhense, o jornal traz em destaque o fato de que Domingos depois de um dia de trabalho fora ao mercado para comprar carne e que Ceci não quis cozinhar a tal carne. Ou seja, Domingos era trabalhador e ela não desempenhava bem o seu papel de dona de casa.
A entrevista mostra o tempo todo que Ceci procurara sua morte: dizia que ela já fizera aborto, que o filho que esperava provavelmente não era de Domingos e, pior, afirma que Domingos falara: “Ceci tinha tido uma briga comigo”. Ora, não foi ele quem brigou com ela, fora ela que brigara com ele, e assim ela foi culpada de seu assassinato.
Citemos outro caso representativo de que a mulher é considerada culpada de sua própria morte e que o assassino (ou assassinos) é inocente. Embora ocorrido no Rio de Janeiro e em uma circunstância bastante diferente do assassinato de Ceci, esse caso também nos chama atenção para mostrar como a mídia acompanha a cultura da violência cometida contra as mulheres. Foi o caso de Aida Cury.
Nos anos de 1958 dois rapazes atraíram a jovem de 14 anos que acabara de sair do convento, para um passeio de carro. Eles levaram a menina para o alto de um prédio de Copacabana e ela, para se livrar de um estupro coletivo se debateu e foi jogada na calçada. O porteiro do prédio
viu tudo e não fez nada para livrar a menina. A Revista O Cruzeiro, publicou insistentemente artigos de David Nasser sobre o caso e os dois rapazes tiveram um julgamento rápido e logo estavam em liberdade.
Outro caso em que a vítima ou seus parentes mais próximos são considerados culpados pelo ato de violência: Vejamos o caso de Caso Araceli, ocorrido em 1973, na cidade de Vitória, no Espírito Santo.
A vítima tinha apenas oito anos de idade, e a mídia constantemente afirmava que “apesar de ser criança era fisicamente desenvolvida e aparentava mais de 10 anos”. Ou seja, tinha corpo de adolescente, já se firmando como mulher. Com apenas 8 anos de idade.
O Caso Araceli Cabrera Crespo até hoje é lembrado não só por quem acompanhou na TV da década de 1970, mas também pela geração posterior, pois tornou-se um símbolo de violência cometida por jovens playboys, filhos de famílias importantes que achavam ter o direito de fazer o que quisessem com meninas de famílias simples.
Tudo começou no dia 18 de maio, dia do desaparecimento da menina que brincava com um gatinho do bar que ficava à frente do ponto do ônibus
que costumava pegar para voltar da escola. Dois rapazes frequentadores do bar há tempo a observavam e, naquele mesmo dia, Paulo Helal, junto com sua ex-amante Marisley Fernandes Muniz, parou seu Mustang branco no ponto de ônibus e Marisley chamou Araceli. Mostrando-lhe uma boneca, ofereceu carona para casa. Araceli encantada com a boneca, e convencida pela mulher entrou no carro. Levada por eles, Araceli não chegou a sua casa no horário de costume, o que fez com seus pais denunciassem o seu desaparecimento.
As investigações sobre o assassinato de Araceli apontaram que os dois rapazes mantiveram a menina por dois dias em cácere privado, no porão do bar Franciscano, que pertencia à família Michilini. Os rapazes, sob efeito de drogas, teriam lacerado a dentadas os seios, parte da barriga e a vagina da menina. Araceli morreu e os acusados ainda permaneceram com o seu corpo sob refrigeração. Jogaram um ácido corrosivo sobre o seu corpo com o intuito de desfigurá-la e lançaram os restos mortais da menina num terreno próximo ao Hospital Infantil da cidade.
No dia 24 de maio, um menino de 15 anos, caçando passarinho em um terreno baldio perto do Hospital Infantil, sentindo um mal cheio foi conferir o que era, e viu uma mão humana. Correu pra chamar seu pai que encontrou outras partes do corpo e constatou que era o corpo de uma criança, e que o mesmo havia sido parcialmente devorado por animais. A polícia teve que garimpar o local para achar outros vestígios do corpo. O rosto da menina estava desfigurado, mas no Instituto Médico Legal, o pai de Araceli contatou, por meio de uma marca na perna do cadáver, que era a sua filha. O crime repercutiu por todo o pais, exigindo a devida apuração e a punição dos culpados. Após varias investigações, o Diário Oficial do Espírito Santo publicou o nome dos acusados, o que escandalizou a alta
sociedade capixaba. Ambos eram membros de famílias poderosas do Estado, proprietárias de muitas terras, comércio e indústrias.
Neste caso, não somente os jornais escritos, mas também os programas televisivos, que dramatizam os crimes passionais, estupros seguidos de morte, incesto, ou mesmo assassinatos de mulheres, jovens e adultas, tal como o caso de Araceli, trouxeram uma dupla mensagem: de um lado acusavam os criminosos, filhos de família de classe média alta, mas, ao mesmo tempo, romantizaram esse tipo de crime e condenaram a mãe de Araceli, Lola, como se a mesma tivesse culpa de, primeiro, não ter cuidado bem da menina (ela ia a escola de ônibus), depois, pelo fato de ela não ser brasileira (ela é espanhola). Além disso, Lola fora acusada de atuar no tráfico de drogas. Os jornais trouxeram a noticia de que Lola fornecia entorpecentes aos dois rapazes e que tinha um caso com o pai de um deles. E, isso fora a causa de os dois rapazes se apossarem da menina.
Araceli tornou-se símbolo capixaba de violência contra a criança ‘com corpo de mulher’ e a mãe, estrangeira, uma mulher marcada pela vida para sempre ter de se defender dos olhares de acusação.
No caso Araceli nada ficou comprovado, embora tenha produzido 14 mortes de possíveis testemunhas e de pessoas que procuraram desvendar o crime, que, além da cobertura intensa da mídia e do especial empenho de alguns jornalistas, ficou impune.
Citamos ainda outros casos em que a mídia ao fazer suas manchetes usou exaustivamente da tradição cultural de que a mulher é a culpada de seu próprio infortúnio. E, isso, anos depois dos casos já citados.
Vejamos algumas manchetes:
- (Diário Popular – SP-11/08/1991: 17) - “PM atira na mulher que estava com outro homem”. A noticia mostra que, após 8 meses de separação, o
PM encontrara sua ex mulher conversando com outro homem... “revoltado, sacou um revolver, atirou no casal e fugiu.”
Diário Popular – SP – 24/09/1991:13
- “Assassinou a ex-companheira ao tentar voltar”. Sergio, 33 anos, vivera com Luciana por 20 anos. “Estavam separados por causa de um ciúme doentio dele. Desesperado com a separação, esperou a ex-companheira defronte à Estação da Fepasa e mais uma vez tentou voltas às boas...”Os PMs..ouviram o tiro.”
Nestes casos as manchetes mostram a mulher que, ao terminar um relacionamento, foi agredida e morta por seu ex-companheiro. Os jornais, ao relatarem esses casos, se pautam no sentimento emocional e fornecem a não aceitação da mulher em retomar o relacionamento como justificativa para o crime.
- O Jornal Folha de São Paulo e o Jornal Estado de São Paulo, de 15/07/2000, noticiam um mesmo caso: o primeiro traz uma manchete que fala “PM mata namorada em hospital” e, o segundo, “Policial executa manta dentro de hospital no DF”.
Geniza (17 anos) havia sido hospitalizada na noite anterior quando sofrera uma tentativa de assassinato por parte de Gabriel que, segundo um Jornal, era casado e queria convencer sua namorada a fazer um aborto. O outro jornal afirmava que dois irmãos tiveram um relacionamento com Geniza desde que ela tinha 15 anos. Agora Gabriel queria reconciliar com a esposa e Geniza o “infernizara”. Gabriel, perturbado deu um tiro que
pegou Geniza de raspão e ela fora internada. No outro dia ele foi acabar o serviço dentro do hospital e depois tentou suicídio.
Cada jornal fala uma coisa. A pressão do namorado para a jovem fazer aborto, um irmão que também namorava com Geniza, ela “inferniza” a vida de Gabriel e a propria insegurança do hospital. As versões escritas nos jornais atenuam a gravidade do gesto do PM e culpam a vítima: a gravidez indesejada, a resistência ao aborto, a relação sexual fora do casamento como uma coisa “normal” do homem e sua tentativa em reatar o casamento com a esposa.
A morbidez de alguns desses crimes tornou-se agente aglutinador da opinião pública, influenciada pelo entusiasmo com que as manchetes dos jornais tratavam a circunstância dos fatos, e pelos debates acalorados entre juristas. Esses últimos, pertencentes ao universo multifacetado de pensamentos filosóficos tradicionais e de pensamentos inovadores, ainda hoje se deixam levar pela permanência das ideias que fortalecem as diferenças entre homens e mulheres.
Como princípio geral, apesar das mudanças da legislação sobre o assunto, muitas manchetes de jornais ainda consideram os crimes de paixão como fato “natural” e os juristas como uma ocorrência útil à sociedade. A banalização da agressão à mulher seria, antes de tudo, a naturalização de uma relação entre homens e mulheres que responde pela formação da família ao reproduzir a vida humana e consertar um mal socialmente reprovado, o comportamento feminino transgressor da norma social.
Ainda existem casos divulgados pela imprensa, e aqueles que chegam à justiça, que envolvem vítimas mulheres, sejam estupros, espancamento ou feminicídios, dentro ou fora do ambiente doméstico, demonstram que, quanto mais o agressor se aproxima do comportamento esperado pela
sociedade do modelo masculino de bom pai, trabalhador e honesto, maior é o afastamento do comportamento da vítima do modelo feminino prescrito como “moça de família” ou esposa fiel, mãe delicada e zelosa com os filhos. O caso de Eliza Samudio, ocorrido em 2010, mostra claramente que ainda hoje as mulheres vítimas de assassinato são responsáveis pelo gesto que as levaram a morte.
O desfecho desse caso, todos conhecemos. Elisa foi assassinada por ter tido um filho de um jogador famoso e seu corpo até hoje não apareceu. Este caso chamou a atenção da mídia e da população brasileira pelo fato de, no âmbito do judiciário, a moral patriarcal ter interferido na aplicação da Lei Maria da Penha. Em outubro de 2009, Eliza fez um registro de ocorrência na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Jacarepaguá, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, acusando o goleiro do Clube de Regatas Flamengo Bruno Fernandes, de quem dizia estar grávida, dos crimes de agressão, indução ao aborto e cárcere privado. A delegada encaminhou um pedido de medida protetiva, segundo faculta a Lei Maria da Penha, para garantir que o denunciado se mantivesse
afastado de Eliza, mas o indeferimento da juíza Ana Paula de Freitas foi justificado pelo fato de considerar que não cabia a aplicação de uma lei cuja finalidade era a proteção da família, proveniente de união estável ou casamento, e não de relações de caráter sexual e eventual. Com esse veredicto, retirou o foco da lei da proteção da mulher como sujeito de direitos em face à violência para a proteção da família, vista pela ótica conservadora da cultura patriarcal.
Em março de 2010, em entrevista televisionada (Jornal Tribuna do Norte - RN - Edição de 07 de Março de 2010), o goleiro, ao expressar seu apoio a um colega do mesmo time, o jogador Adriano, que espancara sua mulher, deu a seguinte declaração
“Qual de vocês que é casado que nunca brigou com a mulher, que não discutiu, que não até saiu na mão com a mulher, né cara? Não tem jeito. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher, xará. Então eu acho que isso é problema pessoal do cara. E ele é o Imperador e por isso que repercute muito, mas ele é um cara que tem sentimentos e é normal se abater um pouco”. Sic.
Três meses depois, Bruno seria denunciado pelo Ministério Público como mandante do assassinato e desaparecimento do corpo de Eliza Samudio, sendo decretada sua prisão temporária no sistema penitenciário. Ela e o filho recém-nascido teriam sido sequestrados no Rio de Janeiro, e levados para o sítio do jogador na Grande BH, onde teriam ficado em cárcere privado, quando foi então levada para a casa do ex-policial civil Marcos Aparecido dos Santos, o Bola, em Vespasiano, também na Grande Belo Horizonte, onde o crime teria ocorrido, tendo Bola como executor. O bebê foi entregue à ex-mulher do goleiro, Dayanne de Souza. Segundo o Ministério Público de Minas Gerais, que apresentou a denúncia, Eliza foi morta porque pedia a Bruno o reconhecimento da paternidade da criança.
Neste caso, resumindo-se o que a imprensa noticiou, podemos afirmar que foi a gota d’ água para que a discussão sobre a violência, a cultura e a midia fosse posta:
1º - porque mostrou que ainda predomina um modelo de família e de comportamento feminino pautado na ideologia patriarcal, cuja consequência é a banalização e a naturalização da violência, sobretudo quando cometida contra mulheres que não seguem os padrões desejados e impostos; e,
2º - porque a violência de gênero não será mais aceita, uma vez que o protagonismo feminino nas transformações sociais, desde a inserção da mulher no mercado de trabalho até a conquista de políticas públicas de gênero, que vem se consolidando a partir da década de 1970, afirmaram a capacidade da mulher em se por a frente e procurar modificar os sistemas de dominação fundamentada nos mais distintos signos da desigualdade social, proporcionando às mulheres poderem ter esperança de uma vida melhor.
Obrigada.

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