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19 de jun. de 2010

"Só direi, crispadamente recolhido e mudo, que quem se cala quando me calei não poderá morrer sem dizer tudo". A língua portuguesa perdeu ontem a voz de José Saramago. O autor de "Memorial do Convento" e "A Jangada de Pedra" se despediu aos 87 anos, deixando uma obra que elevou seu idioma e um exemplo de coerente apego às convicções

Cedo veio a notícia. Partiu a voz da emancipação humana, do realismo fantástico, da alegoria a descrever, questionar e reinventar a realidade. José Saramago cruzou a fronteira do tempo, tantas vezes atravessada por sua pena, no fluxo do discurso que irmanava autor e leitor em uma só consciência, entre desventuras do caminhar a vida, na busca de fazer - e contar - a própria história. Mais que a perda de um dos definidores estéticos da língua portuguesa e de um dos nomes fundamentais da literatura universal, a despedida de Saramago arranca de nosso tempo um de seus referenciais artísticos e éticos. Um quixotesco prolixo contra os moinhos da síntese. Um navegante convicto de seu desassombro, entre mares de misticismo fácil, ondas de escapismo, tormentas de instituições. Uma personalidade mundial, avessa ao estrelato, mas, incontinenti, pronta a levantar a voz, quando entendia necessário, diante dos desalentos do mundo.

Procurando por entre as lentes das palavras o remédio contra a cegueira branca que acomete os viventes munidos de informação e desprovidos de rumo, Saramago tornou-se um norte para muitos. Na arte como na política e, em seu conceito mais amplo, na cidadania. Mesmo que sempre tenha rejeitado a posição de líder, guru, oráculo. Pouco tempo após a primeira eleição de Lula, por exemplo, o escritor veio ao Brasil, dar sequência ao périplo de atividades que o fizeram correr o globo, após a distinção com o Nobel de literatura de 1998. Questionado sobre o novo presidente, Saramago, notório comunista, fez questão de advertir: que os brasileiros não fizessem de seu então recente líder um novo Dom Sebastião, dele esperando conquistas e mudanças comparáveis a milagres.

Também conhecedor das próprias limitações, o ficcionista Saramago não deixou de procurar intervir na realidade, em constantes posicionamentos. Do conflito israelense-palestino ao cerco policial às favelas cariocas, passando pelos ditames da política de privatizações, o escritor, que morreu em casa, em Lanzarote, às 12h30 de ontem (7h30 no horário de Brasília), também fará muita falta por seus incisivos pontos de vista.

DALWTON MOURA
REPÓRTER